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Cuidado e acolhimento em todos os momentos e atuação sob medida para cada paciente e sua família
Por Patrícia Cainelli
Quem imaginaria que um fotógrafo pudesse trazer tanto conforto e alegria à mãe de um bebê internado na enfermaria de pediatria da Unidade de Emergência, há mais de 50 dias.
Gilberto Soares Junior, autor das fotos, a princípio um pouco tímido naquele ambiente, era mais uma das várias pessoas envolvidas na missão de cuidar. A mãe, mais uma entre todas de crianças com doenças crônicas internadas no Hospital das Clínicas, pôde receber cuidados que vão além.
Um cuidado que ultrapassa o foco na doença ou na cura, realizado por muitas mãos e cabeças diversas, que busca aliviar o sofrimento, em qualquer âmbito, do paciente e da família. É também um cuidado oferecido de maneira individualizada, embasado no respeito a crenças, valores, preferências e biografias daquelas pessoas.
O nome desse cuidado é paliativo. O termo paliativo vem do latim pallium, que significa um manto de proteção que os cavaleiros usavam para se proteger da tempestade. Por isso, quando usamos o termo “paliativo”, devemos nos lembrar que ele remete a proteção e cuidado.
Reconhecer o que dói e cuidar
Quando a equipe de cuidados paliativos avalia um paciente, ela busca o que é necessário para minimizar o sofrimento. É uma avaliação holística que engloba tanto aspectos físicos e técnicos, relacionados à doença em si e aos aspectos emocionais, sociais e espirituais. Esse tipo de estratégia de cuidado implica na interação entre profissionais variados.
“É reconhecer o que dói e cuidar”, explica a médica Fabíola Leite, pediatra paliativista do Hospital das Clínicas. “Recentemente, atendi uma paciente que estava sentido muita falta das aplicações de Reiki, que foram suspensas nas enfermarias por causa da pandemia”, conta a doutora Fabíola. “A equipe se organizou para que ela recebesse as aplicações e isso fez uma diferença enorme para ela”.
“Nós não somos seres apenas biológicos ou psicossociais, somos seres biográficos, vivemos uma história e a equipe de cuidados paliativos propõe produzir um trabalho dentro dessa história”, esclarece o psicólogo da oncologia pediátrica Nichollas Martins. Ele lembra a história de uma criança, em situação muito delicada de saúde, que estava sofrendo por não poder ir à escola. “A equipe foi até o colégio e combinou o acolhimento e o número de horas-aula adequado ao seu estado de saúde” explica o psicólogo. “O sentido do viver dele era ser igual a todo mundo, não ser um menino doente. Ir à escola, naquele momento, deu a ele o sentimento de que aquele momento estava valendo a pena”, conclui.
Diferença entre pediátrico e adulto
Embora alguns conceitos sejam iguais, na prática, o cuidado paliativo pediátrico difere muito do cuidado paliativo do adulto. As crianças apresentam doenças diferentes, grande dependência afetiva, formas diversas de reagir à dor e à ansiedade, estão em constante mudança física, psicológica e cognitiva. Isso exige uma expertise diferente de profissionais que saibam lidar com esse universo.
Outro aspecto que difere os dois cuidados é o tom trágico da morte nesta fase da vida. “A infância é a vida que ainda vai se realizar e, do ponto de vista instintivo de preservação da espécie, o ser humano tende a acreditar que a morte nessa fase é catastrófica, uma tragédia social”, explica Nichollas. “A dificuldade é muito maior porque é preciso estar atento às características do desenvolvimento da criança, qual é a dinâmica da família e a comunicação tem que ser diferente”, afirma.
A comunicação com as crianças exige habilidade, treinamento e sensibilidade. Há variados recursos disponíveis, desde brinquedos e jogos até livros e filmes apropriados para cada idade e cada situação. É fundamental ressaltar que elas merecem ser ouvidas e também ter suas dúvidas esclarecidas pelos profissionais. “O respeito e a atenção às crianças e aos adolescentes são sinais de evolução”, completa Nichollas.
A doutora Fabíola explica que os vínculos de afeto são diferentes. “Quando a criança está doente, a gente tem que lidar com os desejos da família também e isso torna a tomada de decisão muito mais complexa”, relata a médica. “Nem sempre o que a família quer é o que a criança deseja. Eu já atendi muitas crianças que me pediram ajuda para falar para os pais que elas não queriam mais tratamento, que sabiam que iam morrer e aceitavam isso”, conta.
Nichollas conta do caso de uma adolescente com câncer em fase terminal que pediu para não ser intubada. “O nosso trabalho foi fazer com que a mãe entendesse e aceitasse o desejo da criança”, explica. “Isso não significou que nós a abandonamos, ela foi cuidada até o fim. Ela teve outro tipo de suporte ventilatório e pôde passar os últimos momentos no colo da mãe”, relata.
O psicólogo lembra que, “dias depois do óbito, a mãe voltou para agradecer e contar que sentiu que fez tudo pela filha até o último momento”. Para ele, isso mostra que “um cuidado bem feito diante da morte é preventivo para a qualidade mental dos sobreviventes e a elaboração do luto é mais tranquila ”, analisa. Essa é outra função do cuidado paliativo, oferecer suporte ao luto das famílias, mantendo o vínculo mesmo depois da morte. O cuidado não morre.
Outro aspecto que difere o cuidado pediátrico dos adultos é a atenção com os irmãos das crianças doentes. “Uma mãe que fica com a criança internada o tempo todo, e que tem mais filhos, primeiro ela vai pensar na criança doente e a vida dos outros fica para segundo plano”, explica a doutora Fabíola. “ A equipe também se preocupa e tenta auxiliar, aproximar os irmãos e orientar as famílias da melhor forma”. Há várias evidências de que o envolvimento dos irmãos em caso de doenças graves é positivo para toda a família.
Plantando sementes
Embora já seja reconhecido e estruturado no exterior, aqui no Brasil, o cuidado paliativo pediátrico ainda está engatinhando. No Hospital das Clínicas, após a pioneira contratação da doutora Fabíola Leite, como paliativista pediátrica do HC Criança, mais três médicas do Departamento de Pediatria – as doutoras Amanda Paiva, Carolina Portugal e Leila Volpon – se uniram para formar o Grupo de Estudos em Paliativismo Pediátrico (GePaP).
O tema passou a ser discutido periodicamente em reuniões que envolvem alunos, residentes, professores e vários profissionais que atuam tanto no HC Criança quanto na Unidade de Emergência. Ela explica que “o GePaP nasceu como um espaço para discutir os casos e um profissional ajudar o outro, porque quando se fala em tomada de decisão em cuidados paliativos, não existe o certo e o errado e sim, o caminho possível”.
A médica ressalta que “a função maior do grupo é plantar sementes. Nós estamos em um serviço de formação em todas as áreas e é muito importante disseminar o conhecimento em paliativismo”. Ao longo da trajetória, o psicólogo Nichollas Martins, da Oncologia Pediátrica, e a psicóloga Maria Laura Pereira, da Pediatria da Unidade de Emergência também entraram no grupo.
Atualmente, as doutoras Fabíola Leite e Leila Volpon recebem pedidos de interconsulta no HC Criança e na Unidade de Emergência. A doutora Carolina Portugal é referência no CTI Pediátrico e a doutora Amanda Paiva, médica assistente do CTI Pediátrico e Neurologia Infantil, atua como colaboradora nos dois setores.
Além das reuniões, o grupo está desenvolvendo uma linha de pesquisa em cuidados paliativos pediátricos, inclusive em conjunto com outros centros brasileiros, já organizou um simpósio e participa de aulas e palestras em diversas instituições, além do HC. Existe também um curso de extensão realizado pela plataforma Moodle. Os encontros podem ser acessados com o código de convite gepap2020, no link:https://cursosextensao.usp.br/course/view.php?id=1772.
Grande número de profissionais abraça esse trabalho como colaboradores, praticantes e semeadores da ação paliativa tanto nos diversos setores do HC Criança quanto na Pediatria da UE, onde destaca-se o apoio da excelente equipe multiprofissional, incluindo os residentes, médicos assistentes, residentes e docentes da Enfermaria de Pediatria.
“Foi por ação dessas pessoas que o fotógrafo pôde realizar o desejo de uma jovem mãe cansada, após uma internação de 50 dias do seu bebê”, explica a doutora Fabíola. E em meio a tantas dores e sofrimento, todos testemunharam seu lindo sorriso e sua expressão de alívio, satisfação e gratidão.
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