Primeiro transplante de fígado realizado em Ribeirão completa 20 anos

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Era 1º de maio de 2001. Estava tudo preparado para o primeiro transplante de fígado de Ribeirão Preto. A cirurgia de retirada dos órgãos do doador estava marcada para as 21 horas e o transplante para as 2 horas da madrugada.  Há tempos, a equipe capitaneada pelo cirurgião hepatologista do Hospital das Clínicas, professor  Orlando Castro e Silva Junior vinha se preparando para esse momento.

Foi quando o celular do professor Orlando tocou e do outro lado da linha a funcionária do Hospital deu uma notícia, “professor, o ar condicionado do centro cirúrgico parou de funcionar, teremos que cancelar o transplante’”. E a resposta, do cirurgião foi imediata “De jeito nenhum, esse transplante precisa sair”

E assim foi feito, uma força tarefa realizada pela manutenção do hospital conseguiu solucionar o problema do ar minutos antes da equipe dar início ao primeiro transplante de fígado da cidade. Todo procedimento desde a retirado do órgão até o implante no receptor levou cerca de 20 horas. O primeiro transplantado foi um representante comercial de 48 anos que estava na lista de espera por um fígado novo devido às complicações da hepatite C. A equipe contou com cerca de 40 profissionais, entre cirurgiões clínicos, anestesistas, enfermeiras e auxiliares de enfermagem e laboratoristas.

Cinco dias após a cirurgia, o paciente já estava dando entrevista e falava animadamente sobre sua nova possibilidade de vida, garantida pelo grande ato de amor que lhe foi confiado. A doadora era uma mulher de 42 anos, vítima de um acidente vascular cerebral que havia manifestado, em vida, a intensão de doar seus órgãos.

A determinação demonstrada pelo professor Orlando em realizar o primeiro transplante, apesar do ar condicionado quebrado, não era exatamente uma novidade. Ela o acompanhava desde meados da década de 80, quando juntamente com a hepatologista clínica, Ana Loures Martinelli, também professora da FMRP, iniciou os estudos para a implantação do programa de transplantes hepáticos.  “Garantir a vida de uma pessoa, trocando um fígado, insuficiente, por outro sadio de outra pessoa representa um dos maiores avanços da medicina e a população de Ribeirão e região que tem o HC como referência, não podiam ficar à margem desse processo”, explica.

O transplante número um aconteceu após aproximadamente dez anos de preparo institucional e humano, com formação da equipe médica e de apoio. “O poeta espanhol Antônio Machado dizia que ‘para o caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao caminhar’. Assim conduzimos nosso departamento e fomos vencendo cada dificuldade”, reflete o cirurgião.

Mais de 500 novas chances

Vinte anos depois, o programa de transplante de fígado do Hospital das Clínicas já proporcionou a oportunidade de uma nova vida a mais de 500 pessoas e se consagrou o Hospital como referência no tratamento de doenças hepáticas. Isso graças a uma equipe organizada e dedicada que conta com a colaboração da administração do Hospital e da Faculdade de Medicina que auxilia com os recursos e suporte necessários.

O professor Ajith Sankarankutty, coordenador do programa de transplante hepático no HC esteve presente na cirurgia histórica do dia 1 de maio de 2001. Ele conta  que “ao longo dos anos ocorreram modificações  nas abordagens clínicas, cirúrgicas e, também, na estrutura e na organização do serviço que permitiram chegar ao momento atual com resultados progressivamente melhores e, provavelmente, com  melhora da relação custo/efetividade. “.

O coordenador explica que ” as mudanças nas abordagens clínicas e cirúrgicas  foram decorrentes  da experiência adquirida pela própria equipe, bem como do acompanhamento de  experiências registradas por outras equipes na literatura pertinente ou por meio de  visitas e trocas de ideias com outros  serviços nacionais e internacionais de transplantes. As cirurgias,  inicialmente, duravam de  10 – 12 horas, e atualmente são executadas de 6 a 7 horas”.  Ele também aponta que “algumas situações que antes eram consideradas inadequadas para transplantes, como casos de pacientes com trombo na veia porta, agora com os avanços nos cuidados clínicos e cirúrgicos, são tratados com sucesso”.

Outro avanço foi a criação do Centro de Transplante Viscerais, no âmbito do Hospital das Clínicas. “A equipe cresceu, assim como  o número de pacientes candidatos a transplante e  transplantados e por solicitação da Divisão de Cirurgia Digestiva, com o  apoio do Departamento de Cirurgia e Anatomia constituiu-se o Centro de Transplante Viscerais”, relata o professor. “Adicionalmente, as diversas equipes de transplante do Estado e do País, têm estabelecido uma rede de cooperação para a captação de órgãos e, nesse contexto, as equipes transplantadoras locais captam o órgão e encaminham para o centro Transplantador do respectivo receptor”, completa.

“O programa de Transplante Hepático é estratégico e contribui para fortalecer a  visão e a missão das Instituições que o abrigam. Deve ser destacado que em algumas circunstâncias é a única alternativa para salvar a vida e, por isso,  na pandemia Covid-19 não foi interrompido”, esclarece o coordenador do programa de transplantes hepáticos do HCFMRP-USP, professor Ajith Sankarankutti. Ele lembra que “o  transplante hepático trata situações que até  recentemente eram consideradas intratáveis, permitindo retorno dos pacientes a suas atividades habituais e vida social. Ademais, o Programas de Transplante  Hepático induzem a implementação e a incorporação  de algumas tecnologias, técnicas e rotinas que acabam beneficiando outros pacientes, o que qualifica a assistência, a formação de especialistas e  amplia o conhecimento científico”, completa.

Importância de ser um doador

O Hospital das Clínicas, como a maioria dos centros transplantadores do Brasil, realiza transplantes que envolvem doadores cadáveres. “Utilizamos o fígado de pessoas  cujas famílias concordaram com a doação, mas somente após a morte encefálica atestada através de exames apropriados..Isso quer dizer que não existe transplante sem a doação. E a doação só ocorre se a família autorizar”, esclarece o coordenador. No Brasil, em 42% das situações, as famílias não autorizam a doação. “São taxas muito altas, que mostra a oportunidade que temos para melhorar. Assim, é importante conversar sobre a vontade de fazer a  doação de órgãos,  após a morte,  ainda em vida, pois no momento da dor e da tristeza inesperadas, após a perda de uma pessoa família, a decisão torna-se mais fácil ou pelo menos, menos dolorosa.”, completa o professor Ajith.

Segunda chance

Em plena pandemia, a estudante de enfermagem Sara Maria Alves Casimiro, esteve à beira da morte. Chegou, inclusive, a receber a extrema-unção na UTI da Santa Casa de Misericórdia de Mococa, onde mora. E o caso dela, nada tinha a ver com a covid.  Aos 19 anos, ela teve uma infecção urinária e os remédios que tomou causaram uma hepatite medicamentosa que levou a uma falência hepática. Em estado muito grave, ela foi transferida às pressas para HC e imediatamente, encabeçou a lista de espera pelo órgão na fila de transplantes.

A cirurgia foi no dia 21 de maio de 2020, durou seis horas e foi considerada tranquila.  Além dos cuidados de uma cirurgia desse porte foram realizados todos protocolos e procedimentos para evitar a covid-19. O sucesso de seu transplante chama a atenção para procedimentos dessa natureza em plena pandemia . A estudante ficou dois meses internada, sendo 30 dias na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Sara recebeu alta no dia 11 de julho e leva uma rotina normal.

Só agradecer

Quando Elias ouviu pela TV sobre a morte do jogador Sócrates por problemas hepáticos, uma onda de desanimo invadiu seu coração. Ele estava na fila esperando por um fígado, sem certeza de que o órgão chegaria a tempo. “Mas aí eu pensei, tenho fé e estou sendo tratado pela melhor equipe em um hospital de referência mundial. Isso afastou os maus pensamentos”, conta Elias.

Até seu fígado chegar, ele internou oito vezes para tratar de complicações decorrentes da hepatopatia. “ Foi uma espera dolorosa, cheia de expectativa e ansiedade”, conta.

O fígado de Elias chegou em um sábado de manhã. “A gente chegou ao HC em 15 minutos depois do telefone tocar me chamando”, conta ele. Mas teve que esperar. Elias era o segundo da fila e a equipe precisava ver se a paciente que estava em primeiro lugar estaria apta a receber o órgão ou não. No final da noite, veio a notícia que o fígado era dele.

“O transplante foi tão tranquilo, que quando acordei perguntei que horas ia ser a cirurgia”, conta divertido. “Hoje eu só tenho a agradecer”, completa.

Conexão de solidariedade

O fígado que chegou ao HC no dia 14 de agosto de 2017 servia para Walter e para Moara. Obedecendo o protocolo, a equipe de transplante chamou os dois candidatos, caso o primeiro estivesse inapto a receber o órgão, o segundo já estaria ali, pronto para cirurgia.

Walter Silva era o primeiro da fila e conheceu Moara Pereira, a segunda, no elevador do Hospital. Trocaram angustias, medos esperanças e a conexão foi imediata e solidaria. Vilma Silva, a irmã de Walter conta que além a angustia pelo irmão, se sentiu angustiada também por Moara. ”Como pedir para Deus um fígado para o Walter, sendo que a Moara já está aqui pela segunda vez”, se perguntava. Do outro lado, Moara munida de sua fé inabalável conta que “ pedia a Deus para que o fígado desse certo para Walter, porque sua vez certamente chegaria logo depois”.

E chegou para os dois, primeiro para Walter que transplantou no mesmo dia e menos de uma semana depois para Moara, graças a solidariedade das famílias de um homem de 35 anos do Vale do Paraíba e de um menino de 14 anos de Ourinhos.

Hoje Walter comemora a vida nova que chegou junto com o fígado novo no mesmo mês do aniversário de um aninho da filha.

Levando uma vida normal, Moara realiza, dia após dia, a lista de desejos que que fez assim que teve alta do Hospital: curtir família, ajudar quem está na fila do transplante, incentivar as pessoas a doar órgãos…

 

Planos para o futuro

A missão salvar vidas não para. “A expectativa é aumentar o número de transplantes realizados por ano, manter os indicadores dos resultados clínico-cirúrgicos no patamar de padrões nacionais e internacionais e, nesse contexto, continuar formando bons médicos e outros profissionais de saúde especializados em transplantes por meio da pós graduação lato sensu  e  stricto sensu”, avalia o coordenador . “Assim,  as necessidades da população de abrangência do Hospital das Clínicas poderá ser assistida na integralidade e o Estado e o País poderão ser beneficiados por meio da  cooperação com outros serviços, a formação de especialistas e o conhecimento produzido, que podem subsidiar a organização de outros Centros  de Transplantes, completa”.

Para o professor Orlando, que há 20 anos atrás,  deu inicio a essa obra,  histórias como a da Sara, do Elias, da Moara,  “são resultados de uma estrutura organizada e comprometida como a do HC, da vontade inabalável de pessoas  dedicadas e também pela existência do nosso Sistema Único de Saúde (SUS)”, define. “ O transplante é o maior exemplo de cidadania que se pode existir por ser financiado pelo estado, possibilitando que todas as classes sociais tenham o mesmo direito”, conclui.

Retratos de uma história de Sucesso

 

 

 

 

 

 

 

 

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